quinta-feira, 4 de outubro de 2012

REPORTAGENS DO PASSADO: TRILHO PARA A FELICIDADE

 "Trilho para a Felicidade" foi uma entrevista que publiquei em 2002, quando voltava a falar-se da sempre polémica abordagem sobre o casamento de padres católicos. O meu entrevistado de então, Justino Santos, contou na primeira pessoa a "batalha" de amor que travou entre a Igreja e a condição de homem. De como, na condição de homem, se viu diante de um casamento em que ficou sozinho com dois filhos. Da inseminação artificial que "trouxe" os gémeos que resultaram do segundo casamento e... da Fé que nunca perdeu, apesar das provas a que a vida o sujeitou...

Trilho para a felicidade

Ordenado padre católico em 1962, com 23 anos de idade, Justino Santos optou por deixar a igreja três anos mais tarde por amor a uma mulher com quem veio a casar.
Quarenta anos depois, o antigo sacerdote olha o passado e, na primeira pessoa, sem esconder as lágrimas, falou desses tempos, do casamento que acabou por se desfazer, do presente e de como manteve sempre a Fé, num percurso que o leva a assumir que hoje “sou feliz”.
in geraçãoCIC - 05/2002

Logo aos 10 anos de idade Justino Santos entrou para o Seminário de Ermesinde onde iniciou a caminhada que o conduziu ao sacerdócio. Mais tarde, ainda menino, o gondomarense fez passagens por outras casas religiosas (Trancoso, Vilar e Sé), e assume que enquanto seminarista “fui sempre um aluno normal e terminei o curso de teologia com media de 14 valores”.
Recorda ter sido sempre muito alegre, bom ginasta (jogou hóquei em patins, voleibol, ping-pong, basquetebol, andebol, futebol) e muito variado também no uso de instrumentos musicais.
“Durante as minhas férias procurei sempre ajudar o meu pároco”, porque “queria ser padre desde pequenino”, como revelou, mas, quando aos 14 anos, como logicamente acontece, sentiu a tendência para o casamento e para a paixão amorosa “tentei evitar as consequências dessa paixão”.
No segundo ano de teologia, nas férias grandes saiu do seminário porque achava que não devia continuar e foi por pressão da família e do pároco que acabou por regressar. Quando em 1962 Justino Santos foi ordenado sacerdote católico no Seminário Maior do Porto, fê-lo, como conta, com a intenção de um dia quando os padres pudessem casar, “eu poder casar”.
Como padre, celebrou missa na Igreja dos Grilos e, depois, foi colocado como coadjutor na Senhora da Conceição, no Marquês, corria o mês de Agosto de 1962.
Tudo isto se passava “naqueles anos em que se falou muito no Cons. Vaticano II e na possibilidade de os padres se casarem”, adiantou por forma a justificar a segunda intenção aquando da ordenação.
O que é certo é que na Igreja da Senhora da Conceição, com todo o movimento, toda a acção que ali desenvolveu ligada aos jovens, à musica, aos colégios, ao Hospital de Santa Maria..., a certa altura “eu já não aguentava mais e pedi ao Bispo para sair do Marquês” porque em termos humanos e pessoais “já não aguentava ali continuar, tal era a pressão de querer exercer e ser padre com todas as letras: vertical, sincero, verdadeiro naquilo que dizia e acreditava e estava na iminência de o não ser”, confessou.
Em 1964 foi para Arouca para pároco de duas freguesias (Canelas e Espiunca) onde exerceu o sacerdócio durante cerca de um ano “para além dessas paróquias era também o pregador e confessor das paróquias vizinhas”.
“Cheguei a chorar depois de ver a realidade do que ia enfrentar” e a única forma que encontrou de amarfanhar “todas as tentações e problemas de consciência que sentia dentro de mim, foi envolver-me numa serie de acções: abri uma rua a ligar as duas freguesias, criei um posto medico com medicamentos que ia buscar à BIAL, no Porto, levei o delegado de saúde à povoação que não tinha médico, dava o pequeno almoço às crianças, ia a Caritas buscar leite, arranjei panelas para a cozinha, fiz um centro de convívio... tinha uma actividade de louco autêntico para me amarfanhar dos sentimentos que sentia porque gostava imenso de ser padre. A minha paixão era essa e procurei tudo para continuar”.
No ano de 1965 Justino Santos voltou a falar ao Bispo (D. Florentino Silva) e disse-lhe que não podia continuar a exercer as funções de padre porque estava apaixonado por uma rapariga, que estava a ser verdadeiro e não queria continuar a ser mentiroso por dizer uma coisa e praticar outra.
“D. Florentino quis que eu renovasse os meus votos, mandou o Bispo auxiliar falar comigo, também o Pe. Orlando da igreja de Cedofeita e outros padres mas eu não conseguia e pedi mesmo ao Bispo para abandonar”.


Raptado à porta de casa


Na manhã seguinte à conversa com o Bispo, a 15 de Janeiro de 1965 Justino Santos deixou Arouca e regressou ao Porto.
“Quando cheguei tinha à minha espera a Secção de Justiça da PSP que se identificou e já não me deixou entrar em casa da minha família e me levou, me raptou, metendo-me dentro de um táxi e levando-me para a Casa de Saúde São João de Deus, em Barcelos para ver se conseguiam demover-me”.
Ao saber do desaparecimento, a família procurou os serviços de Artur Santos Silva (pai), um conhecido advogado da cidade e membro da oposição que acabou por denunciar o desaparecimento e a conivência entre a Igreja e a PSP à Policia Judiciaria (PJ).
Uma vez libertado sob a versão de que precisaria descansar, por isso o ‘retiro’, Justino Santos volta para casa e a 20 de Fevereiro desse mesmo ano, casa pelo Registo.
“Não contentes com o rapto, que foi considerado pela PJ como crime público e que eu acabei por mandar abafar e resolvi esquecer, porque isso não era obra da Igreja mas sim dos homens que cometem erros e cometem falhas, e porque eu mantinha a minha fé, um ano depois mandaram-me para a tropa”.
Destacado para Mafra, voltou ao Bispo a quem solicitou autorização para casar católicamente visto já não estar abrangido pela Concordata e, como argumento de suporte, a colocação como militar civil no curso de oficiais em vez de capelão.
“O que é certo é que fui para Mafra e ao fim do primeiro ciclo, em que fui o melhor classificado do pelotão, e por isso teria oportunidade de escolher o que queria, também não me deixaram e mandaram-me para atirador”.
No segundo ciclo apresentou-se ao director da instrução a quem explicou que conhecia as razões para fazerem dele atirador “querem mandar-me para o Ultramar como forma de castigo e para tentarem que eu arrepie caminho e volte a ser padre”. E continuou “eu não volto e já estou casado e esperamos um bebé pelo que não há qualquer possibilidade de voltar a ser padre. Tenho fé mas não me demovem de ser homem e respeitar os compromissos que assumi”.
Sob a ameaça de ser reduzido a soldado, enfrentou a intimação: “matem-me, mandem-me para a cadeia, façam o que quiserem mas eu não vou para o Ultramar”.
De resultados como primeiro classificado conta que começou a ser o último e que foi então que o alferes do pelotão em que se integrava, Terra Quente, “como homem e como amigo, me disse que compreendia a minha situação e que sabia que se eu tivesse boa classificação podia não ir para o Ultramar pois a chamada dos oficiais começaria do fim para os principio”.
Porque sentiu que estava mãos dele decidir a sorte que viria a ter, “fiz de mim gato sapato, dei cabo do meu corpo mas não dei cabo do meu espirito”. No final do segundo ciclo, entre 600 homens, Justino Santos era o segundo classificado. “Fui escolhido em primeiro lugar para ir para a Forca Aérea, fui para a BA 3 em Tancos e por isso não fui como alferes, nem como capitão para o Ultramar”.
No final dos 27 meses de tropa, também com dois louvores, foi convidado a ir para a NATO, no Luxemburgo,  mas também não foi “e vim embora com dispensa do Secretario de Estado sem ter o castigo que alguns queriam que era ter ido para o Ultramar e ter morrido no Ultramar”.


“...por isso sou feliz”


Porque continuou sempre a acreditar e manter a fé que tinha, um movimento por parte de amigos tentou junto do Bispo que este compreendesse a situação e permitisse o casamento catolicamente, o que aconteceu a 7 de Dezembro de 1968, “foi o próprio secretario do Bispo que me veio casar na Igreja de Cedofeita”.
Teve dois filhos desse casamento, trabalhou em várias áreas, foi vereador na Câmara Municipal do Porto durante quatro anos e está como presidente de uma junta de freguesia desde 1994, há três mandatos.
A esposa, tal como Justino Santos, licenciada em filosofia, em 1992, quis ir para o Brasil para fazer o doutoramento e... não voltou  “fiquei com os dois filhos aqui. Fiz de pai e de mãe, fiz de tudo...!”
“Ao fim de quatro anos achei que era impossível continuar numa situação daquelas; ela queria só dedicar-se ao Ensino e não queria vir para Portugal, achava que a obrigação de ser mãe e esposa era menos importante do que o Ensino e a Filosofia. Por isso divorciei-me em 1996”.
Voltou a casar, como diz “com uma mulher maravilhosa, boa esposa e, sobretudo, boa mãe, da qual tenho dois filhos, gémeos, com quase quatro anos, bonitos e que Deus me deu também, por isso sou feliz”.
Visivelmente emocionado e sem esconder as lágrimas que começaram a fugir pelas órbitas dos olhos, contou como tem sentido sempre a presença de Deus a cada dia.
“Em 1996 fui operado a um cancro, quando minha mulher esteve para ter os bebés houve ameaça de perder os filhos mas, cá estou..., cá estou..., cá estou..., acreditando em Deus, acreditando na Virgem Maria que me deu estes dois filhos que resultaram de implantação artificial porque a minha mulher não podia ter filhos e por isso sofremos muito durante esses nove meses, numa altura em que se debatia a questão do aborto”.
Depois do divórcio, dadas as circunstâncias de ter sido a mulher a querer deixar a família, ainda está a tentar revogar o primeiro casamento de forma a poder voltar a casar pela igreja.
Por todo o ‘pesadelo’ que vivera por altura em que se ‘demitiu’ de funções, não chega a culpar o Bispo, e, a ter sido vitima de alguma vingança pessoal, aponta o pároco da igreja da Conceição "a quem depois desculpei. O Bispo, de certa forma aceitou que me fizessem isso pois em contrário teria tomado uma posição, mas a igreja somos todos nós e também tive padres e amigos que me acompanharam naqueles momentos dramáticos da minha vida”.
Ainda que por estranhos caminhos, Justino Santos manteve sempre a fé em Deus e mesmo nos momentos mais difíceis acreditou “sempre! Deus esteve sempre comigo! Já estive para morrer e houve uma noite em que estive completamente cego e fui parar ao hospital mas até aí encontrei Deus nos outros a ajudarem-me a compreender”.
  

Igreja dotada para o futuro


Se efectivamente os padres pudessem casar “eu tinha-me ordenado e continuado como padre” mas como ainda hoje essa continua a ser uma etapa distante, Justino Santos encara a posição enquanto presidente de uma junta de freguesia com o mesmo sentido de fazer a ponte entre o humano e o divino ou, no caso, “entre as carências, os problemas das pessoas e aquilo que elas têm: o problema da habitação, o desemprego, a toxicodependência, os arrumadores..., gente que sofre e que em pleno século XXI vive, às vezes, sem a dignidade que a criatura humana tem direito e vamos aqui procurando, com falhas, resolver os problemas dessas pessoas”, disse.
Hoje são milhares os padres que deixaram de exercer funções, uns estão casados pela igreja, outros não e até há associações que defendem o casamento dos padres, afinal, como lembrou, “excepto São João, todos os Apóstolos eram casados e foi a um desses, Pedro, que Cristo entregou a Sua Igreja”.
“Não quero com isto dizer que seja obrigatório o casamento, agora, deve ser dada a liberdade de o fazerem”.
O ex-padre pode eventualmente fundamentar “liberdade de o fazerem” se levado em linha de conta que é cada vez mais comum encontrar padres que desempenham funções como médicos, advogados, engenheiros, professores, deputados, autarcas, presidentes de câmara e tantas outras profissões e, se podem ser tudo, se há liberdade para tudo, “porque razão não podem estar casados?”, questiona por fim.
Sem perder tempo, avançou de imediato para uma explicação à própria questão “evidentemente que dizem que têm de estar libertos de responsabilidades familiares para se dedicarem à Igreja mas a verdade é que os padres de hoje estão ligados a diversas actividades sem estarem apenas ao serviço do apostolado e podem fazê-lo, igualmente, estando casados ou não”.
De forma a viabilizar maior alcance para o que afirmava explicou que no Oriente os padres são Ortodoxos e obedecem a Roma tal como “aqueles padres que se convertem ao catolicismo mas que vêm de outras igrejas, são casados e continuam casados”.
Quanto à polémica questão que defende o direito a que as mulheres possam exercer o sacerdotalismo Justino Santos volta a ser claro ao afirmar que não vê razão para que a mulher não possa ser sacerdotisa e também aqui fundamenta “acho que a primeira sacerdotisa foi Maria. Nossa Senhora transportou em si o Humano e o Divino e foi Ela que na boda de Canadis disse Façam o que Ele vos diz, depois de dizer a Cristo que eles não tinham vinho”.
Realmente, qualquer praticante da Igreja diz no Evangelho, nas orações: Maria Sacerdotisa e por isso mesmo Justino Santos critica que quando se afirma que Cristo não escolheu mulheres para apostolas, “temos de nos reportar àquele tempo”, pois a verdade “é que junto Dele, na Cruz, estava Maria, estava Madalena, estava Marta”, como citou antes de continuar “Ele não foi contra a mulher e se Cristo viesse hoje talvez também fosse buscar mulheres sacerdotisas e nem andaria de sandálias...!”, tudo porque, de facto, “os tempos são outros”.
Por tudo isto, Justino Santos é de opinião que a figura do padre tem de ser alguém do nosso tempo e dotado para o futuro, alguém que compreenda os jovens, os idosos, as outras religiões, que seja vertical. Tem de ser alguém que em todos os momentos da sua vida seja mensageiro da Boa Nova e que lute pela justiça social, independentemente de ser homem ou mulher.