in geraçãoCIC - 05/2002
Logo aos 10
anos de idade Justino Santos entrou para o Seminário de Ermesinde onde iniciou
a caminhada que o conduziu ao sacerdócio. Mais tarde, ainda menino, o
gondomarense fez passagens por outras casas religiosas (Trancoso, Vilar e Sé),
e assume que enquanto seminarista “fui sempre um aluno normal e terminei o
curso de teologia com media de 14 valores”.
Recorda ter
sido sempre muito alegre, bom ginasta (jogou hóquei em patins, voleibol,
ping-pong, basquetebol, andebol, futebol) e muito variado também no uso de
instrumentos musicais.
“Durante as
minhas férias procurei sempre ajudar o meu pároco”, porque “queria ser padre
desde pequenino”, como revelou, mas, quando aos 14 anos, como logicamente
acontece, sentiu a tendência para o casamento e para a paixão amorosa “tentei
evitar as consequências dessa paixão”.
No segundo
ano de teologia, nas férias grandes saiu do seminário porque achava que não
devia continuar e foi por pressão da família e do pároco que acabou por
regressar. Quando em 1962 Justino Santos foi ordenado sacerdote católico no
Seminário Maior do Porto, fê-lo, como conta, com a intenção de um dia quando os
padres pudessem casar, “eu poder casar”.
Como padre,
celebrou missa na Igreja dos Grilos e, depois, foi colocado como coadjutor na
Senhora da Conceição, no Marquês, corria o mês de Agosto de 1962.
Tudo isto se
passava “naqueles anos em que se falou muito no Cons. Vaticano II e na
possibilidade de os padres se casarem”, adiantou por forma a justificar a
segunda intenção aquando da ordenação.
O que é certo
é que na Igreja da Senhora da Conceição, com todo o movimento, toda a acção que
ali desenvolveu ligada aos jovens, à musica, aos colégios, ao Hospital de Santa
Maria..., a certa altura “eu já não aguentava mais e pedi ao Bispo para sair do
Marquês” porque em termos humanos e pessoais “já não aguentava ali continuar,
tal era a pressão de querer exercer e ser padre com todas as letras: vertical,
sincero, verdadeiro naquilo que dizia e acreditava e estava na iminência de o
não ser”, confessou.
Em 1964 foi
para Arouca para pároco de duas freguesias (Canelas e Espiunca) onde exerceu o
sacerdócio durante cerca de um ano “para além dessas paróquias era também o
pregador e confessor das paróquias vizinhas”.
“Cheguei a
chorar depois de ver a realidade do que ia enfrentar” e a única forma que encontrou
de amarfanhar “todas as tentações e problemas de consciência que sentia
dentro de mim, foi envolver-me numa serie de acções: abri uma rua a ligar as
duas freguesias, criei um posto medico com medicamentos que ia buscar à BIAL,
no Porto, levei o delegado de saúde à povoação que não tinha médico, dava o
pequeno almoço às crianças, ia a Caritas buscar leite, arranjei panelas para a
cozinha, fiz um centro de convívio... tinha uma actividade de louco autêntico
para me amarfanhar dos sentimentos que sentia porque gostava imenso de ser
padre. A minha paixão era essa e procurei tudo para continuar”.
No ano de
1965 Justino Santos voltou a falar ao Bispo (D. Florentino Silva) e disse-lhe
que não podia continuar a exercer as funções de padre porque estava apaixonado
por uma rapariga, que estava a ser verdadeiro e não queria continuar a ser
mentiroso por dizer uma coisa e praticar outra.
“D.
Florentino quis que eu renovasse os meus votos, mandou o Bispo auxiliar falar
comigo, também o Pe. Orlando da igreja de Cedofeita e outros padres mas eu não
conseguia e pedi mesmo ao Bispo para abandonar”.
Raptado à porta de casa
Na manhã
seguinte à conversa com o Bispo, a 15 de Janeiro de 1965 Justino Santos deixou
Arouca e regressou ao Porto.
“Quando
cheguei tinha à minha espera a Secção de Justiça da PSP que se identificou e já
não me deixou entrar em casa da minha família e me levou, me raptou, metendo-me
dentro de um táxi e levando-me para a Casa de Saúde São João de Deus, em
Barcelos para ver se conseguiam demover-me”.
Ao saber do
desaparecimento, a família procurou os serviços de Artur Santos Silva (pai), um
conhecido advogado da cidade e membro da oposição que acabou por denunciar o
desaparecimento e a conivência entre a Igreja e a PSP à Policia Judiciaria
(PJ).
Uma vez libertado
sob a versão de que precisaria descansar, por isso o ‘retiro’, Justino Santos
volta para casa e a 20 de Fevereiro desse mesmo ano, casa pelo Registo.
“Não
contentes com o rapto, que foi considerado pela PJ como crime público e que eu
acabei por mandar abafar e resolvi esquecer, porque isso não era obra da Igreja
mas sim dos homens que cometem erros e cometem falhas, e porque eu mantinha a
minha fé, um ano depois mandaram-me para a tropa”.
Destacado
para Mafra, voltou ao Bispo a quem solicitou autorização para casar
católicamente visto já não estar abrangido pela Concordata e, como argumento de
suporte, a colocação como militar civil no curso de oficiais em vez de capelão.
“O que é
certo é que fui para Mafra e ao fim do primeiro ciclo, em que fui o melhor
classificado do pelotão, e por isso teria oportunidade de escolher o que
queria, também não me deixaram e mandaram-me para atirador”.
No segundo
ciclo apresentou-se ao director da instrução a quem explicou que conhecia as
razões para fazerem dele atirador “querem mandar-me para o Ultramar como forma
de castigo e para tentarem que eu arrepie caminho e volte a ser padre”. E
continuou “eu não volto e já estou casado e esperamos um bebé pelo que não há
qualquer possibilidade de voltar a ser padre. Tenho fé mas não me demovem de
ser homem e respeitar os compromissos que assumi”.
Sob a ameaça
de ser reduzido a soldado, enfrentou a intimação: “matem-me, mandem-me para a
cadeia, façam o que quiserem mas eu não vou para o Ultramar”.
De resultados
como primeiro classificado conta que começou a ser o último e que foi então que
o alferes do pelotão em que se integrava, Terra Quente, “como homem e como
amigo, me disse que compreendia a minha situação e que sabia que se eu tivesse
boa classificação podia não ir para o Ultramar pois a chamada dos oficiais
começaria do fim para os principio”.
Porque sentiu
que estava mãos dele decidir a sorte que viria a ter, “fiz de mim gato
sapato, dei cabo do meu corpo mas não dei cabo do meu espirito”. No final
do segundo ciclo, entre 600 homens, Justino Santos era o segundo classificado.
“Fui escolhido em primeiro lugar para ir para a Forca Aérea, fui para a BA 3 em
Tancos e por isso não fui como alferes, nem como capitão para o Ultramar”.
No final dos
27 meses de tropa, também com dois louvores, foi convidado a ir para a NATO, no
Luxemburgo, mas também não foi “e vim
embora com dispensa do Secretario de Estado sem ter o castigo que alguns
queriam que era ter ido para o Ultramar e ter morrido no Ultramar”.
“...por
isso sou feliz”
Porque
continuou sempre a acreditar e manter a fé que tinha, um movimento por parte de
amigos tentou junto do Bispo que este compreendesse a situação e permitisse o
casamento catolicamente, o que aconteceu a 7 de Dezembro de 1968, “foi o
próprio secretario do Bispo que me veio casar na Igreja de Cedofeita”.
Teve dois
filhos desse casamento, trabalhou em várias áreas, foi vereador na Câmara
Municipal do Porto durante quatro anos e está como presidente de uma junta de
freguesia desde 1994, há três mandatos.
A esposa, tal
como Justino Santos, licenciada em filosofia, em 1992, quis ir para o Brasil
para fazer o doutoramento e... não voltou
“fiquei com os dois filhos aqui. Fiz de pai e de mãe, fiz de tudo...!”
“Ao fim de
quatro anos achei que era impossível continuar numa situação daquelas; ela
queria só dedicar-se ao Ensino e não queria vir para Portugal, achava que a
obrigação de ser mãe e esposa era menos importante do que o Ensino e a
Filosofia. Por isso divorciei-me em 1996”.
Voltou a
casar, como diz “com uma mulher maravilhosa, boa esposa e, sobretudo, boa mãe,
da qual tenho dois filhos, gémeos, com quase quatro anos, bonitos e que Deus me
deu também, por isso sou feliz”.
Visivelmente
emocionado e sem esconder as lágrimas que começaram a fugir pelas órbitas dos
olhos, contou como tem sentido sempre a presença de Deus a cada dia.
“Em 1996
fui operado a um cancro, quando minha mulher esteve para ter os bebés houve
ameaça de perder os filhos mas, cá estou..., cá estou..., cá estou...,
acreditando em Deus, acreditando na Virgem Maria que me deu estes dois filhos
que resultaram de implantação artificial porque a minha mulher não podia ter
filhos e por isso sofremos muito durante esses nove meses, numa altura em que
se debatia a questão do aborto”.
Depois do divórcio,
dadas as circunstâncias de ter sido a mulher a querer deixar a família, ainda
está a tentar revogar o primeiro casamento de forma a poder voltar a casar pela
igreja.
Por todo o
‘pesadelo’ que vivera por altura em que se ‘demitiu’ de funções, não chega a
culpar o Bispo, e, a ter sido vitima de alguma vingança pessoal, aponta o
pároco da igreja da Conceição "a quem depois desculpei. O Bispo, de certa
forma aceitou que me fizessem isso pois em contrário teria tomado uma posição,
mas a igreja somos todos nós e também tive padres e amigos que me acompanharam
naqueles momentos dramáticos da minha vida”.
Ainda que por
estranhos caminhos, Justino Santos manteve sempre a fé em Deus e mesmo nos
momentos mais difíceis acreditou “sempre! Deus esteve sempre comigo! Já estive
para morrer e houve uma noite em que estive completamente cego e fui parar ao
hospital mas até aí encontrei Deus nos outros a ajudarem-me a compreender”.
Igreja dotada para o futuro
Se
efectivamente os padres pudessem casar “eu tinha-me ordenado e continuado como
padre” mas como ainda hoje essa continua a ser uma etapa distante, Justino
Santos encara a posição enquanto presidente de uma junta de freguesia com o
mesmo sentido de fazer a ponte entre o humano e o divino ou, no caso, “entre as
carências, os problemas das pessoas e aquilo que elas têm: o problema da
habitação, o desemprego, a toxicodependência, os arrumadores..., gente que
sofre e que em pleno século XXI vive, às vezes, sem a dignidade que a criatura
humana tem direito e vamos aqui procurando, com falhas, resolver os problemas
dessas pessoas”, disse.
Hoje são
milhares os padres que deixaram de exercer funções, uns estão casados pela
igreja, outros não e até há associações que defendem o casamento dos padres,
afinal, como lembrou, “excepto São João, todos os Apóstolos eram casados e foi
a um desses, Pedro, que Cristo entregou a Sua Igreja”.
“Não quero
com isto dizer que seja obrigatório o casamento, agora, deve ser dada a
liberdade de o fazerem”.
O ex-padre
pode eventualmente fundamentar “liberdade de o fazerem” se levado em linha de
conta que é cada vez mais comum encontrar padres que desempenham funções como
médicos, advogados, engenheiros, professores, deputados, autarcas, presidentes
de câmara e tantas outras profissões e, se podem ser tudo, se há liberdade para
tudo, “porque razão não podem estar casados?”, questiona por fim.
Sem perder
tempo, avançou de imediato para uma explicação à própria questão “evidentemente
que dizem que têm de estar libertos de responsabilidades familiares para se
dedicarem à Igreja mas a verdade é que os padres de hoje estão ligados a
diversas actividades sem estarem apenas ao serviço do apostolado e podem
fazê-lo, igualmente, estando casados ou não”.
De forma a
viabilizar maior alcance para o que afirmava explicou que no Oriente os padres
são Ortodoxos e obedecem a Roma tal como “aqueles padres que se convertem ao
catolicismo mas que vêm de outras igrejas, são casados e continuam casados”.
Quanto à
polémica questão que defende o direito a que as mulheres possam exercer o sacerdotalismo Justino Santos volta a ser claro ao afirmar que não vê razão para
que a mulher não possa ser sacerdotisa e também aqui fundamenta “acho que a
primeira sacerdotisa foi Maria. Nossa Senhora transportou em si o Humano e o Divino
e foi Ela que na boda de Canadis disse Façam o que Ele vos diz, depois
de dizer a Cristo que eles não tinham vinho”.
Realmente,
qualquer praticante da Igreja diz no Evangelho, nas orações: Maria
Sacerdotisa e por isso mesmo Justino Santos critica que quando se afirma
que Cristo não escolheu mulheres para apostolas, “temos de nos reportar àquele
tempo”, pois a verdade “é que junto Dele, na Cruz, estava Maria, estava
Madalena, estava Marta”, como citou antes de continuar “Ele não foi contra a
mulher e se Cristo viesse hoje talvez também fosse buscar mulheres sacerdotisas
e nem andaria de sandálias...!”, tudo porque, de facto, “os tempos são outros”.
Por tudo
isto, Justino Santos é de opinião que a figura do padre tem de ser alguém do
nosso tempo e dotado para o futuro, alguém que compreenda os jovens, os idosos,
as outras religiões, que seja vertical. Tem de ser alguém que em todos os
momentos da sua vida seja mensageiro da Boa Nova e que lute pela justiça
social, independentemente de ser homem ou mulher.