segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

AMOR DE PAI

"(...) e não quero cura para essa loucura."
* Este texto é sobre a minha filha, Constança, mas é para ti, Yiuri.

O tempo passou num ápice e já correram quatro meses desde que fiz da palavra "filha" a mais querida e desejada no meu dicionário.
Têm sido momentos de grande cumplicidade e ternura.
Sonhei com isto toda a minha vida e agora que finalmente sou pai... o que sinto em mim é tão grande, tão estupidamente grande... que não cabe em mim.

Tudo começou naquele inicio de tarde em que vi a minha filha nascer. Talvez ainda não estivesse certo do que aquele momento viria a representar; foi tudo muito vivido e sentido - e há aquele olhar directo que me tocou na alma (contado em "Sonho de Menino", neste blogue) -, mas o momento em que disparou o clic, o momento que terá accionado esta... loucura que admito sentir pela minha béba, terá sido quando ela apertou a mãozinha dela à volta do meu dedo mindinho e me passou a sensação de que ali, naquele instante, juntos, seríamos capazes de conquistar o mundo.

Toda a energia dela estava reunida naquele gesto e mesmo assim ela passou-ma para que eu a inalasse num sorvo e  renascesse para ela. Nesse momento, com aquela dádiva, sem dúvida, enlouqueci; fiquei louco pela minha filha e não quero cura para essa loucura.

É uma loucura positiva, do tipo que desperta saudade na voz quando falo dela e não a tenho por perto; é uma loucura que me acelera a vontade de chegar a casa para voltar a estar com ela; é uma loucura do tipo "tenho de lhe dar um beijo e um abraço" para poder sentir que ela está mesmo ali, sempre, para amar e para ser amada. É a minha loucura!

Antes disso, sei, já estava apaixonado por ela e isso terá acontecido assim que a peguei no colo e a envolvi nos meus braços. Soube disso assim que a senti respirar o mesmo ar que eu e assim que a aconcheguei no meu peito. É tão bom estar apaixonado desta forma!!!

Agora, com o sorriso que esboça ao acordar, com as gargalhadas que rasga ao rir das brincadeiras e dos sons que se inventam, com o choro de malandrice que também já sabe fazer... e com todas as descobertas que ela vai fazendo a cada dia que passa... não tenho qualquer dúvida em assumir que estou viciado nela!

Antigamente, quando chegava a casa, tinha os maus cães aos saltos para lhes dar atenção e a manifestarem a alegria que nunca souberam esconder por me terem de volta; agora, quando chego a casa, além deles aos saltos - esse amor é incondicional e não muda! -, eu próprio me vejo ansioso e a arfar (e até aos saltos!) para chegar rapidamente ao reencontro com a minha béba!...

É curto ainda, mas já temos um passado juntos...
Para ser perfeito, só faltas tu, Yiuri. Ias gostar dela, eu sei! Ela vai gostar de ti.

Amo-te minha filha.
De todo o coração.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

QUIS SABER QUEM SOU

"Não há qualquer registo de felicidade ou de aventura na viagem de Moçambique para cá"
Parte da minha vida - melhor, da minha existência - foi sempre um grande mistério para mim. Sempre me vi como uma peça de um puzzle gigante, dos que têm milhares de peças e deixam sempre a ideia de que será impossível montar porque... vai faltar alguma, certamente.

A verdade é que nasci num país distante onde, na altura, se considerava apenas como sendo uma extensão da Pátria, a Metrópole, Portugal. Nasci pouco antes do final desse prolongamento da Nação, em Abril de 1973, exactamente um ano antes da Revolução que, de certa forma, provocou o caos para tantos milhares de portugueses de todas as ex-Colónias.

É aí que entram as peças do meu puzzle.
Tenho memórias naturalmente fugazes de tempos agora idos e vividos que remontarão a 1976 e 1977, os anos que marcam a nossa vinda para Portugal.
Não há qualquer registo de felicidade ou de aventura na viagem (viagens) que nos trouxeram de Moçambique para cá. O País estava sob uma grande agitação e tudo carecia de ordem e organização. Tudo estava a começar de novo. E "tudo", aqui, representa Portugal, representa as ex-Colónias e representa, acima de tudo, as pessoas. Pessoas que tinham uma vida e que a perderam, pessoas que não tinham nada e ficaram ainda pior e pessoas, as de cá, que não estavam preparadas para receber as pessoas que vinham de lá.

"Tenho imagens desse tempo"
Corria uma espécie de xenofobia e os "portugueses de cá" chamavam, de forma reprovatoria e descriminatoria de "retornados" aos "portugueses de lá". Os retornados, na verdade, eram refugiados e eles, mais do que ninguém, sentiam-se deslocados...

Tenho imagens desse tempo. 
De quando viemos e não nos adaptámos. Regressámos e já não fomos aceites. Deixámos de ser refugiados e passámos a ser "não gratos". Fomos expulsos.

Tinha 3 anos. 
Recordo-me de aterrar na então União Soviética - um voo de escala - e caírem flocos de neve. Parecia mágico! Tinha sandálias calçadas e vestia calções. Recorda-me o passo apressado de todos os que saiam do avião e percorriam a pista. A minha Mãe falou-me da neve, do frio e daquelas pessoas que funcionavam como relógios.

Em Lisboa, sem saber relacionar se na primeira ou na segunda vez, recordo-me de termos ido para casa de familiares sem "rótulo" porque já cá estava há mais tempo e... de não termos sido recebidos e tratados da forma mais calorosa, quando se percebeu que tínhamos pouco mais do que o que trazíamos...

Lembro-me de a minha Mãe chorar. 
Hoje percebo as lágrimas e a força que tentava mostrar, mas que não tinha porque não sabia como seria... o dia seguinte.

Lembro-me daquelas pessoas todas a dormir no aeroporto da Portela à espera de qualquer coisa que nunca mais chegava. Eram filas e filas de gente destroçada e sem brilho. Lembro-me que também nós, como tantos milhares de pessoas, ainda termos lá dormido.

Quatro décadas depois, quando também eu me separei daquele menino de três anos que de alguma forma se envergonhava de ter vivido aqueles tempos tantas vezes encobertos por uma tristeza que não vinha dele, mas do que estava em redor dele, eis que a RTP produziu e apresentou uma série televisiva que exibiu em horário nobre e que veio trazer a conhecimento o desespero, as motivações e as privações de todos aqueles que foram forçados a vir para Portugal para escapar à morte e salvar as famílias perdendo nessa demanda, tudo o que tinham em Angola, em Moçambique - sobretudo aí, mas também na Guiné, em Cabo Verde, em São Tomé... onde quer que fosse desse Portugal Ultramarino.

E se não tem havido a ponte aérea?
A série, "DEPOIS DO ADEUS", mais do que simples entretenimento, ilustra uma parte importante da História de Portugal; uma parte que não é retratada nos livros escolares e que mais parece nunca ter existido, tal a indiferença política e social que apagou por completo o degredo social que se instalou no País depois do 25 de Abril de 1974. 
A série é emocionalmente forte, mas ainda fica aquém da real catástrofe que foi o negligente e criminoso abandono do Ultramar. 
Na série também se ilustram os oportunistas que fizeram dinheiro à custa da desgraça social. Mostra uma parte do programa do Governo que através do IARN [Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais] alojara milhares de famílias em unidades hoteleiras espalhadas por todo o País e aflora, ainda, a questão dos subsídios e senhas de refeição que então foram atribuídos, mas não retrata nem evoca a proliferação de barracas e miséria que se espalhou igualmente pelo País e com grande predominância pela Área Metropolitana de Lisboa.

E fomos atirados aos tubarões...
A tantos milhares (milhões) de portugueses como a minha Mãe, o retrato da série provocou emoções fortes que despertaram memórias e vieram abrir feridas que o tempo tinha tapado, mas nunca sarado. Emoções que devolveram lágrimas que brotaram directamente do coração de quem perdeu tudo, veio com uma mão à frente e outra mão atrás e a quem apenas sobrou a dignidade.

Para outros, como eu, a série levou a perceber algumas memórias que à distância do tempo já vivido se confundiam entre o real e o imaginário, mas que de facto aconteceram. Quem as viveu não foi este homem adulto que hoje regista estas palavras, mas o menino de três, quatro aninhos, que também era... eu.

Quantos desses forçados retornados tiveram uma real segunda oportunidade depois de regressarem à terra-mãe? Quantos se perderam no álcool, na droga, na prostituição...? Quantos perderam as forças e puseram fim à própria vida? 

Era isto a Metrópole...!? 
Que desilusão!...

Sem fazer política ou politiquice e ainda que aqui mal pergunte, onde estão agora os políticos de então que ainda não os vi perfilar para pedir desculpas à minha Mãe que teve de encontrar forças onde já não havia e que ainda assim me criou, me passou princípios e me educou sem discutir ou mostrar a revolta que lhe assolava a alma com a vida que lhe calhou em sorte?

Hoje, quando olho para trás e penso em tudo aquilo que me assalta a memória... uma pergunta se mantém: e se não tem havido a ponte aérea? O que teria então sido de todas aquelas pessoas, de mim, da minha Mãe...?