terça-feira, 4 de novembro de 2014

120...150...200 km por hora

"(...)... e ganhamos noção do tempo todo já passado nessa solitária condição..."

Em 1970 (antes ainda de eu ter nascido), em plena ressaca de Woodstock e de todo o movimento cultural dos hippies, depois de todo aquele sexo, drogas e rock n'roll sustentado em paz e amor e muita revolta social, nos países de lingua portuguesa (mais marcante em África e no Brasil do que propriamente na metrópole onde se vivia de uma forma mais... oprimida), afirmava-se cada vez mais a 'jovem guarda' onde figurava e afirmava o Reinado, Roberto Carlos, o cantor brasileiro mais popular de todos os tempos.

As letras e as músicas que eram dadas a conhecer falavam em amor, mas também em saudade e em aventura. Vincavam um estilo ("hip" dos "hippies") que também se afirmava pela forma de vestir - aquelas calças à boca de sino, aqueles tamancos que colocavam nos pés, as camisas justas ao corpo... -, mas de uma forma mais metódica, em oposição aos hippies que se afirmavam pela forma completamente desleixada de vestir e pelas cores e floreados. Mas tudo isto, dizia, porque então começavam a proliferar canções românticas que embalavam em pequenas estórias de curta narrativa.
A que se segue é uma delas, de Roberto Carlos, mas que para lá da letra da canção, ouço e interpreto com diferentes sentidos...

"As coisas estão passando mais depressa. O ponteiro marca... 120"
Sem dúvida, uma viagem de carro, mas que para mim... é um retrato da vida que passa, todos sabemos, a correr. Talvez aqui eu pudesse estar a viver a idade dos 20´s, quando achamos - e acreditamos mesmo! - que podemos fazer tudo. Somos indestrutíveis!

"O tempo diminui, as árvores passam como vultos, a vida passa. O tempo passa.
Estou a 130... As imagens se confundem. Estou fugindo de mim mesmo. Fugindo do passado, do meu mundo assombrado de tristeza, de incerteza..."
Depois vem aquela fase da vida em que começam a surgir as responsabilidades. Começam a surgir os planos e olhamos para o futuro e... é tão incerto! Queremos trabalhar e começar uma carreira, mas não temos experiência. Quem pode contratar 'castiga-nos' por termos tentado viver os 20 anos... como que culpabilizando-nos por já ter passado essa fase... há mais tempo.

"... orgulhosos... casmurros... (...) heróis da noite..."
"Estou a 140... fugindo de você. Eu vou voando pela vida sem querer chegar. Nada vai mudar meu rumo nem me fazer voltar! Vivo fugindo sem destino algum. Sigo caminhos que me levam a lugar nenhum..."
Nesta fase tornamo-nos 'orgulhosos' e casmurros. Não temos nada, mas achamos que temos uma personalidade forte e confundimos isso com 'vaidade' e 'estupidez'. Nem sempre sabemos reconhecer quem nos quer bem e nunca concordamos com os mais velhos. Somos contestatários do sofá, heróis da noite, daqueles que à luz das estrelas são capazes de mover o mundo, mas que pela manhã... se esfumaçam em promessas, afinal, ocas.
"O ponteiro agora marca... 150. Tudo passa ainda mais depressa: o amor, a felicidade... 
O vento afasta uma lágrima que começa a rolar no meu rosto"
A vida afinal tem um sentido! Começamos a percebê-la. Os amores, os desamores, os amigos, a família... tudo começa a fazer sentido e começamos, finalmente, a 'avaliar' o trajecto então percorrido. Tanto tempo já perdido e a vida... aqui, tão à mão! Tão... pouco-bem aproveitada!

"Estou a 160. Vou acender os faróis, já é noite. 
Agora são as luzes que passam por mim. 
Sinto um vazio imenso..."
De repente temos 40 anos. Construímos a nossa própria família, ainda que tarde.
Já não olhamos para o percurso que ficou para trás. Agora olhamos para o que temos à frente e receamos os tempos que vão chegar...
O medo - uma sensação nova! - começa a tormar conta de nós... é o 'medo? de não estarmos. É o medo de não conseguirmos. Medos!...

"...nem quando vou parar..."
"Estou só na escuridão, a 180!
Estou fugindo de você!"
A estrada é longa e vamos prosseguindo sem mesmo darmos conta de que os cabelos brancos tomaram de assalto o nosso aspecto. Os filhos foram crescendo e até já opinam e dão palpites sobre o que está certo ou errado. Estão ainda tão 'despidos' de noção!

"Eu vou, sem saber p'ra onde nem quando vou parar
Não, não deixo marcas no caminho p'ra não saber voltar
Eu... sinto que o mundo se esqueceu de mim,
Não, não sei por quanto tempo ainda eu vou ser assim"
Olhamos uma vez mais para trás e esboçamos um sorriso amargo ao recordarmos as promessas e juras de amor que um dia se afirmaram como sendo para sempre. Olhamos para o lado e percebemos que a outra almofada está vazia. Compreendemos a razão de haver tanto espaço na cama... Recordamos as conchinhas e o peito largo que servia de apoio à cabeça da companhia amada. Recuamos nas memórias e ganhamos noção do tempo todo já passado nessa solitária condição. A saudade aperta e a pontada aguda que nos fere o peito estreita-se entre o passado e o futuro. Já nem sei quem receie mais...

"O ponteiro agora marca... 190.
Por um momento tive a sensação de ver você a meu lado... o banco está... vazio.
Estou só... a 200 por hora".
De repente estamos no final da vida. Somos idosos e já sem forças para ir muito mais longe. Os filhos estão criados. A vida está passada. O futuro nada me reserva. As memórias... ah! as memórias!!... São traiçoeiras e por vezes surgem apenas porque as desejamos com uma determinada recordação, já nem são reais... Já nem sei se alguma vez existiram... .
Até os amigos, aqueles que podiam às vezes resuscitar essas memórias, até 'esses' amigos já desapareceram...

"Vou parar de pensar em você para prestar atenção à estrada...
Vou, sem saber p'ra onde nem quando vou parar
Não, não deixo marcas no caminho p'ra não saber voltar
Às vezes, às vezes sinto que o mundo se esqueceu de mim,
Não!, não sei por quanto tempo ainda eu vou ser assim"

"Eu vou!...
Eu vou sem saber p'ra onde, nem quando vou parar
Não...! Não deixo marcas no caminho p'ra não saber voltar
... o mundo se esqueceu de mim...
... voando pela vida sem querer chegar
Nada vai mudar meu rumo p'ra me fazer voltar...
Não sei por quanto tempo ainda vou viver assim".

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Marília Pêra_120, 150, 200 km por hora (Brilhante!!)