quinta-feira, 5 de abril de 2012

A ERA DO DR. CAMÕES



A minha "aversão" aos médicos é fácil de se explicar e não tem qualquer maldade, apenas uma natural desconfiança...

Para contar esta história terei de recuar (ena pá! o tempo passa mesmo!!) alguns bons 25 anos, pelo menos, e envolver o bom nome de um médico de família de então, no Centro de Saúde de Linda-a-Velha,  o bom do dr. Camões!
Pois o ritual era mais ou menos este: eu, um "sobrevivente" nato, conhecido por fazer bons "negócios" no liceu [tudo tinha um preço e podia ser vendido ou alugado, inclusive dicas para namorar (!!), para os menos ajeitados nessa arte - eles e elas! -] e quando percebi que podia fintar o sistema e salvar muita gente que estivesse no limite de reprovar o ano  por faltas (lembram-se disso?), resolvi entrar em acção...

Isto para ficar mais perceptível terei primeiro de revelar que tudo começou quando numa ocasião dispus de um bloco de justificações médicas da especialidade de estomatologia, do Hospital de Egas Moniz, e que estando carimbado e tudo, apenas tendo de preencher os campos em branco e assinar, me rendeu uns bons dinheiros na época!...

Tinha um sócio, o Feijões, que por ter uma caligrafia "de" médico recebia uma comissão por tratar ele do preenchimento dos espaços e da assinatura. Essas justificações resolveram imensos casos de faltas que os respectivos pais nunca vieram a saber e tinham dois preços, consoante quisessem comprar a justificação em branco ou já preenchida.
Houve uma vez em que o Feijões ousou reivindicar que deveria receber mais dinheiro (ele ficava com 50 escudos numa justificação de 350 escudos) e tive de despedi-lo por isso... Quando ele acabou por meditar melhor e "implorou" para poder retomar a parceria, passou a receber apenas 45 escudos!
Eh, eh, eh, eh!! (um dia ainda conto porque razão o baptizei como "Feijões"...! É uma outra história.)

Mas, e de volta à história inicial, estando eu imbuído desse espírito mercantil (por isso também nunca me importei ou fui dos que pedia uma mesada em casa... Às vezes, quando a recebia, ok!, mas como não era costume e os tempos também não eram fáceis... eu lá me safava! Até hoje, de resto!), sabendo que o livrinho não podia durar para sempre e percebendo que podia ganhar mais, muito mais dinheiro se em vez de "safar" umas faltas, pudesse limpar um período inteiro... eis que me dediquei ao Dr. Camões.

Sempre fui muito e bom observador e quando ia com a minha mãe ao Centro de Saúde pude reparar que o Dr. Camões (não sei se por timidez dele, se por ser muito atarefado a escrevinhar as receitas e as credenciais para exames), raramente olhava para as pessoas ou levantava o nariz do que tanto escrevia para observar quem tinha à frente. Acho até que era um grande frete para ele quando tinha de levantar-se para auscultar os pulmões ou o coração de alguém...! Ou, talvez, ele nem gostasse muito daquele bigode que tinha e sentisse estar algo deslocalizado entre o amontoado de pêlo que mantinha no rosto e uma profissão que se calhar nem gostava de exercer enquanto funcionário público? Não sei!...

A verdade é que saindo do liceu, às 18h30, passava pelo Centro de Saúde que ficava logo ali ao lado e com mais ou com menos 20 ou 30 minutos de espera, lá era atendido. Uma vez no gabinete apenas tinha de queixar-me de tudo o que me ocorresse e às vezes ainda lhe dizia que a minha mãe precisava de uma receita para qualquer coisa e, no final, saia de lá com receitas e credenciais para exames que numa visita seguinte ele nunca se lembrava de perguntar pelos resultados, prescrevendo outros, apenas. Pois era o que eu precisava: ter várias "coisas" para ter várias vinhetas dele e do Centro de Saúde.

Lá voltava o Feijões à ribalta! Arranjávamos uma folha A5 branca, escrevinhávamos qualquer coisa que justificasse a ausência às aulas, colocávamos as respectivas vinhetas e... voilá!!, eis que estava preparado um atestado médico - e até validado pelo Centro de Saúde - que entrava direitinho para a "limpeza" de cadastro de quem pagasse. Creio que a mais valiosa, na altura, rendeu uns 2 500 escudos, o Feijões deve ter recebido 500!

Hoje, à distância de mais de duas décadas, duvido que tal se fizesse com tanto "engenho", mas os tempos também são outros. Hoje, a esta mesma distância, a nossa pequena patifaria até parece ter alguma graça, mas a verdade é que isso me fez crescer com a continuada impressão de que os médicos de família em geral serão todos muito parecidos com o Dr. Camões: talvez olhem para os pacientes, mas na verdade limitam-se a prescrever de acordo com a vontade do paciente. Há médicos e médicos, é verdade, mas para mim haverá sempre um dr. Camões em cada um deles...!

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